Apagamento Cultural travestido de Apropriação Cultural: a visita da Anitta à tribo Xingu e a preocupação com o cancelamento.
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Desde que essa pauta de Apropriação Cultural surgiu nos debates sociais e políticos, eu sinto um genuíno incomodo sobre como uma reflexão a respeito da valorização de certos atributos culturais só ser feita a partir da ótica e representatividade de pessoas brancas para o deliberado apagamento de outras culturas com a premissa de que se não for alguém daquele local, logo, é apropriação cultural.
A parte mais curiosa sobre a Apropriação Cultural é porque ela ainda por cima passa pela ótica daqueles a que chamaremos de brancos para englobar todos aqueles que não são vítimas de preconceitos sociais em virtude da sua cor de pele ou traços raciais específicos.
São os brancos que passaram a ditar o que era e o que deixava de ser Apropriação Cultural, curioso, não?
O debate tomou proporções quando fora notado que vestimentas, acessórios e atributos característicos de determinados povos não era valorizado ou era até mesmo considerado coisa de "pobre" quando usado pelos locais, mas assim que alcançasse camadas mas altas ou de elite, como desfiles de moda, rapidamente esse acessório, atributo, etc, passava a ser socialmente aceito. Assim, apropriavam-se da cultura alheia para que esta servisse a uma classe de pessoas, chegando ao ponto de tornar inacessível aos que usavam originalmente. Isso é apropriação cultural: pegar algo daquele povo, mas descartar o valor quando usado por aquele povo, só validando quando incorporado pela cultura branca.
Gerou-se, então, socialmente, diversos embates que, ao contrário do que alegam, gerou prejuízos aos que poderiam ter oportunidades com a visibilidade daqueles atributos e acessórios. Por exemplo: as tranças nagô, que eram majoritariamente usados por mulheres pardas e negras aqui no Brasil, passou a ser alvo da pauta e gerou ataques reais àquelas que usavam as tranças e não se encaixassem nesse grupo. Com efeito prático, trancistas perderam a oportunidade de ampliar seu leque de clientela, tanto localmente, quanto o atendimento a turistas, porque passou-se a atacar deliberadamente os clientes dessa trancista, que, por óbvio, não procurariam mais o serviço. Passado alguns anos, não se pauta mais como apropriação cultural as tranças, pois já se compreendeu que ao fazer isso, prejudica-se justamente a área de atuação das mulheres negras. Infelizmente, mesmo se compreendendo isso agora, um estrago enorme já foi feito por pautas que são apenas jogadas, feitas feitas de maneira raivosa, ao invés de ser, como todo debate político social deve ser feito, com a exposição e respeito aos pontos contraditórios para que assim se chegue a um consenso saudável para a sociedade.
Dei como exemplo as tranças nagô, mas isso se alastrou a vários itens. O pior dos casos que eu me recordo foi o ataque deliberado de uma mulher a outra no metrô que estava usando lenço na cabeça. O lenço, um acessório usada em diversas culturas, inclusive no Brasil, a prática foi apenas abandonada, mas era muito usado por mulheres religiosas, foi o responsável por gerar uma situação de conflito em área pública, colocando em risco a integridade da mulher que usava o lenço. O motivo de a mulher usar o lenço era seu tratamento de câncer que fez seus cabelos caírem e o lenço é um dos acessórios usados para proteger a sensível região da cabeça que estava desnudado em virtude do tratamento.
Com isso, as pessoas passaram a ficar temerosas de usarem coisas simples e triviais, mas serem deliberadamente atacadas por outras tais raivosas que acham que tudo deve virar militância, ignorando o complexo contexto das relações e comportamentos humanas. E é aí que entra a Anitta.
Visitando a aldeia Kuikuro no Parque Indígena do Xingu, a Anitta foi convidada a participar do ritual Kuarup, ao passo que a Anitta ficou com medo de ser cancelada por pessoas de fora, sendo que ela foi convidada pelo líder do povo Kayapó, o Cacique Raoni. Ora, o convite daqueles que pertencem àquela cultura não deveria ser levado em conta muito mais do que aqueles que querem criar regras - os brancos - sobre o que pode ou não ser feito a respeito de determinada cultura?
Anitta ficou com medo de ser cancelada. Por quem? Pelos brancos. Ficou tão preocupada com os de fora que por pouco não cometeu uma enorme grosseria com os de dentro, ignorando que a voz deles é mais importante do que a voz que vem de fora.
Incansavelmente os povos nativos brasileiros já falaram que não tem problema as pessoas se fantasiarem de índios em festividades como Carnaval e similares - festas a fantasia, por exemplo -, que isso era uma forma de enaltecer a cultura nativa desse país e suas declarações foram desvalidadas por aqueles - os brancos - que decidiram serem eles os auditores que pode e do que não pode.
Por mais que sejam usados por motivações que podem ser consideradas triviais, quando as pessoas se fantasiam de indígenas - termo esse que, inclusive, passou a ser pautado também, porque passaram a alegar indígena é de quem é da Índia (ó, Deus, quem é da Índia é indiano) -, elas não apenas recuperam conceitos ritualísticos que envolvem pintar o corpo e usar itens que remonte à natureza, como trazem a luz, consciente ou inconscientemente, os assuntos sociais e políticos a que esses povos estavam submetidos e ao enaltecer a cultura indígena, colocamos em evidência a necessidade de proteger e respeitar esses povos.
A partir do momento que passaram a submeter ao crivo de "Apropriação Cultural" o uso de itens indígenas, passamos para a fase dois: o "Apagamento Cultural".
Há uma necessidade urgente de se silenciar as vozes que enaltecem e falam em prol de culturas indígenas para que sua ausência, sejam as pautas, sejam os povos, não sejam sentidas.
Como todos ficam melindrados em falar e serem acusados de usar as causas para hypar na Internet, não tem sido incomum que as pessoas optassem por não abordar o tema - sabe como é, né? Para não roubar o protagonismo alheio.
Enquanto levantava informações para essa postagem, acabei, inclusive, me deparando com uma matéria em que a indígena Ysani Kalapalo criticava a Anittta, alegando que ela desrespeitou o ritual e que a cantora não se importa com a causa e estava apenas usando das causas indígenas para criar fama. O mais curioso nessa declaração é que a ativista de direita Ysani foi uma das pessoas mais críticas às pautas de Apropriação Cultural, alegando que não tinha problema nenhum as pessoas se pintarem e vestirem como indígenas. Descartou em sua crítica o fato de que Anitta participou do ritual à convite da liderança da tribo, o que causa justamente o que fora dito acima e o motivo do receio de Anitta em participar da cerimônia: uma perspectiva externa que quer se sobrepor à perspectiva interna usando a Cultura do Cancelamento para penalizar pessoas. Pelo que vi, a postagem de Ysani havia sido removido de sua rede social.
Temos que nos ater a um fato primordial sobre cultura: ela é feita para ser dividida mesmo. A cultura deve ser trocada entre povos para que o ser humano alcance não apenas o desenvolvimento tecnológico, como o desenvolvimento humano. Essa relação passa a ser distorcida a partir do momento que a relação de cultura entre povos passa a ser vista não apenas como mercadoria, mas ferramenta de poder. Temos que ser muito cautelosos e vigilantes sobre o quanto deixamos de evoluir por conta de estigmas equivocados sobre elementos que envolvem a sociedade.
Em se tratando de Brasil, mais especificamente, considero um equivoco que nos distanciam tanto dos povos indígenas, uma vez que herdamos seus traços, seus hábitos, sua culinária, entre tantos outros aspectos.
Há de se questionar: a quem interessa o apagamento dos indígenas da nosso gene biológica e social?
Importante destacar que "houve um aumento significativo nas pesquisas sobre o Xingu após a visita da Anitta à região. De acordo com dados do Google, as buscas sobre povos indígenas cresceram 6.200% em apenas 24 horas após a visita. Isso demonstra como a visibilidade, impulsionada por figuras públicas como Anitta, pode gerar maior interesse e awareness sobre a cultura e questões indígenas" (Google I.A.), reforçando o óbvio: quanto mais a gente retrata, visita, enaltece, mais visibilidade a gente dá. Bem diferente de sair cancelando figuras públicas lhe imputando "apropriações indevidas", não acham?
Novamente: a quem interessa o apagamento desses povos, no fim das contas?
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